Encerrando nesta semana sua gestão à frente da Presidência da Associação Brasileira de Energia Nuclear (ABEN), uma semana após a entidade ter completado quatro décadas de existência, o engenheiro Carlos Henrique da Costa Mariz traçou um balanço das principais conquistas e dos projetos implantados, discorreu sobre a expansão da atuação da ABEN nacional e internacionalmente e abordou a International Nuclear Atlantic Conference (INAC), conferência realizada bianualmente pela ABEN, que é o maior e mais importante evento acadêmico, tecnológico e comercial/empresarial do setor nuclear da Hemisfério Sul, entre outros temas.
“O maior recado que posso deixar [ao novo Governo Federal] é chamar a atenção para que seja criado um grande Programa Nuclear no Brasil o qual quebre o paradigma com base na experiência de França, Coreia do Sul, China e EUA, para que possamos desenvolver e construir usinas nucleares em série, e que ele venha atrelado também com grandes programas de desenvolvimento industrial e de recursos humanos, aprimoramento das universidades e centros técnicos. Que esse Programa Nuclear seja feito com a descentralização da localização”, completou.
Confira, abaixo, a entrevista com o presidente da ABEN no biênio 2020-2022, Carlos Henrique da Costa Mariz.
Com o seu mandato encerrado nesta semana, qual balanço faz à frente da Presidência da ABEN?
Sempre tive alguma ligação com a ABEN, tendo sido, inclusive, chair de um Encontro da Indústria Nuclear (ENIN), que faz parte do escopo da INAC. Quando o Rogério Arcuri lançou sua candidatura ao cargo de presidente da ABEN, ele me convidou para ser o 1º vice-presidente. Foi uma distinção para mim e uma forma de colaborar com a chapa dele, que tinha vários objetivos interessantes nas áreas de desenvolvimento do setor nuclear e modernização da ABEN, bem como uma série de assuntos que se discutiam na época. Iniciamos a gestão dele em dezembro de 2020 e continuamos com uma animação grande para executar várias tarefas. Contudo, lamentavelmente, o Arcuri adquiriu covid-19 em maio de 2021 e veio a falecer. Foi uma grande tristeza para todos nós, perdemos um grande profissional e um grande amigo. Assim assumi a presidência da ABEN com o dever de honrar os compromissos assumidos e de zelar pelo crescimento da Associação em prol do desenvolvimento do setor nuclear brasileiro.
Dois anos passam rápido. O que observamos no início é que a ABEN precisava inovar na comunicação digital, que é um campo que evolui constantemente. Tivemos preocupação com o visual da ABEN e com a forma de divulgar os seus conteúdos. Mudamos a logo da Associação e reformulamos o site, tornando-o responsivo e interessante. Isso facilitou a comunicação com o setor e com os profissionais de forma geral. Além, é claro, do fortalecimento das mídias sociais. Também lançamos um selo comemorativo aos 40 anos de fundação da ABEN, ocorridos no último dia 7.
Marcamos presença em seminários, palestras e eventos do setor nuclear. Enfim, executamos o trabalho com o total apoio da Diretoria da ABEN, formada por um pessoal extremamente qualificado nas diversas áreas do setor nuclear. A ABEN pôde dar um passo maior ao ter mais visibilidade dentro do setor e da sociedade. Hoje, a ABEN tem muito mais seguidores nas redes sociais – somente no Instagram, o crescimento foi de mais de 600% nos últimos cinco meses, superando a marca de 2 mil seguidores. Também aumentamos a quantidade de sócios aspirantes, individuais e institucionais. A nossa entidade tem uma grande missão dentro do setor nuclear porque foca em todos os segmentos, incluindo os de tecnologia e ciência. Creio que os passos dados na Administração Arcuri com Mariz como presidente e com a diretoria foram grandes, pois muitas bases foram lançadas e consolidadas. Existe uma boa quantidade de empresas que se associaram recentemente à ABEN e muitas outras virão ao longo do próximo ano.
O senhor poderia falar do desafio de promover em 2021, de maneira inédita, uma INAC na modalidade virtual?
Logo que a ingressamos, começamos com o desenvolvimento da INAC 2021. Infelizmente nossa gestão lidou com a séria questão da pandemia de covid-19. A INAC, o maior e mais importante evento do setor nuclear da Hemisfério Sul, foi realizado no ano passado de forma virtual e teve como tema central “Nuclear Technology: Reducing our carbon footprint and increasing quality of life” (“Tecnologia Nuclear: Menos impacto do carbono no planeta e mais qualidade de vida”). Foi um grande desafio porque sempre a organizávamos na modalidade presencial. Tivemos que verificar que caminhos seguir, empresas que poderiam auxiliar, montar equipes e pensar na parte da participação das empresas e dos profissionais, estudantes e demais interessados. Montar a estrutura da INAC para a realização desse grande evento. Isso foi feito com êxito e tivemos a presença inédita, na abertura da nossa Conferência, do diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), Rafael Grossi. Tivemos também as importantes presenças do então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, e do diretor-geral da Agência para a Energia Nuclear da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (NEA/OECD), Wiliam Magwood.
Em que passo está a organização da INAC 2023?
A nova Diretoria da ABEN, que vai ser empossada nesta quinta-feira, dia 15, será encabeçada por John Forman, um grande executivo técnico que trabalha no setor nuclear há muitos anos, com uma visão muito boa sobre a área nuclear brasileira e internacional. Junto com toda a nova diretoria, em especial o Antonio Müller, 1º vice-presidente, e o André Osório, 2º vice-presidente, o John Forman dará o impulso necessário que a ABEN ainda precisa para se desenvolver muito mais e lançará as bases para a INAC 2023. A INAC normalmente ocorre no fim do ano e, desta vez, poderá ser híbrida, ou seja, realizada nas modalidades presencial e virtual.
Como foi o trabalho para aumentar a internacionalização da ABEN?
Foi expressivo. Como exemplo, posso citar o estabelecimento de uma parceria institucional com a Société Française d’Énergie Nucléaire (SFEN); a participação da ABEN, por meio de vídeo, no Estande Brasil montado na 66ª Edição da Conferência Geral da AIEA; e a publicação da última edição da Revista Brasil Nuclear na versão em inglês, além da tradicional em português. Além disso, hoje a ABEN é a representante brasileira do International Nuclear Society Council (INSC), instituição que congrega importantes organismos internacionais. Com relação à aproximação com a SFEN, é interessante dizer que essa instituição francesa tem muita experiência na área nuclear. A ideia é que façamos um seminário online em 2023, no sentido de aproveitar a experiência francesa no que diz respeito à construção e ao desenvolvimento do programa nuclear e o que o Brasil pode aprender com isso. A França conseguiu instalar, em dez anos, praticamente mais de 40 usinas nucleares. E a França também nos ensina que a questão-chave para o setor nuclear ter sucesso é a construção em série. Instalar várias usinas e orientar os seus vetores para isso gera economia de escala, baixa os custos e facilita a formação de pessoal e a interação com a indústria nacional. Na área de internacionalização, a presença do vídeo da ABEN, sobre o setor nuclear brasileiro, na Conferência Geral da AIEA foi extremamente relevante. À medida que se entra nesse ambiente, surge um imenso leque de opções e, com certeza, a nova diretoria vai aproveitá-las. Eu farei parte da Diretoria da ABEN no biênio 2022-2024, como vogal, e estarei lá presente para colaborar. Sobre a versão em inglês da Revista Brasil Nuclear, acredito que facilita a comunicação com todo o mundo nuclear. A ABEN passou a ter, pela primeira vez, essa porta de entrada para o exterior para divulgar suas matérias, a nível internacional.
Gostaria de dar uma palavra final sobre sua gestão à frente da ABEN?
Particularmente, me sinto honrado e gratificado por ter participado da ABEN e foi um prazer trabalhar com o pessoal que já está lá há um certo tempo, como a nossa secretária, Sandra, o Josemar, que ajuda na administração da ABEN, e o Bernardo, que é o nosso jornalista. No ano passado, também tínhamos a presença do Gustavo, que ajudava a tocar questões inerentes à INAC, entre outras. O tempo que passei como presidente da ABEN foi de uma riqueza imensa e agora tenho a Associação no meu coração. Quero vê-la cada dia mais próspera. O que eu puder fazer para que a ABEN cresça e se desenvolva, farei com muito prazer. E que o setor nuclear acompanhe porque, na verdade, essa é a meta maior.
Que mensagem você deseja passar ao novo governo sobre a área de geração nuclear?
Partindo do nosso consumo per capita de eletricidade, em torno de 2.500 kWh/hab/ano, é importante pontuar que é muito pequeno para um país da dimensão do Brasil. A título de comparação, o Canadá tem um consumo per capita de 13.854 kWh/hab/ano; os Estados Unidos têm de 11.730 kWh/hab/ano; a Alemanha tem de 6.693 kWh/hab/ano; a França tem de 6.644 kWh/hab/ano; Portugal tem de 4.556 kWh/hab/ano; e o Chile tem de 4.026 kWh/hab/ano. O Brasil deveria ter hoje, e não daqui a dez anos, um consumo acima de 5.000 kWh/hab/ano e, assim mesmo, com tendência de crescimento. Há uma ligação muito forte entre o consumo per capita de eletricidade e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O Brasil ocupa a 84ª posição em consumo per capita de energia elétrica e a 75ª no IDH no mundo. Portanto, como queremos nos desenvolver, precisamos incrementar, e muito, nossa produção de energia elétrica. Esse é o ponto inicial de qualquer país que queira se desenvolver. Se não cuidarmos com rapidez esbarraremos na limitação energética. E, para isso, é preciso chamar a atenção para dar prioridade máxima à expansão da geração. Também quero chamar a atenção para que a política do Ministério de Minas e Energia (MME) seja traçada com base nos três pilares fundamentais: segurança energética, segurança econômica e segurança ambiental. De nada adianta construir uma quantidade enorme de turbinas eólicas e placas solares, se a matriz não for suficientemente segura. Então, é preciso constituir uma matriz que tenha segurança energética, composta, sobretudo, por usinas que possam operar continuamente dentro do sistema elétrico e que possam ser controladas. Esse é o caso da fonte nuclear. A energia nuclear é a forma mais intensa de produção de eletricidade porque proporciona a operação contínua durante muitos anos – uma usina nuclear construída hoje tem vida útil de seis a oito décadas. Além disso, é uma energia limpa, pois não emite gases de efeito estufa. É necessário expandir aceleradamente o Programa Nuclear Brasileiro (PNB).
O Plano Nacional de Energia (PNE) 2050 menciona até dez novos gigawatts (GW) nucleares em 30 anos, ou seja, cerca de dez novas usinas. Particularmente, acho pouco para as necessidades do Brasil. É muito para o que o Brasil fez até hoje, mas temos que aprender com França, China, Coreia do Sul e assim por diante a construir rápido, barato e dentro do orçamento. Isso podemos aprender. É questão de definição de uma política nesse sentido. Para atingir tal meta, precisamos iniciar a construção nesta década de, pelo menos, quatro usinas nucleares. Se isso não ocorrer, nem a meta do PNE 2050 será atingida. O desenvolvimento e construção de uma planta nuclear dura, em média, dez anos. Também é preciso olhar as novas tecnologias; esta vai ser a década dos pequenos reatores modulares (SMRs), que estão sendo desenvolvidos em larga escala por mais de 70 empresas no mundo. Quanto à necessidade de combater o aquecimento global, a energia nuclear foi classificada, neste ano, como uma fonte verde pela União Europeia. O maior recado que posso deixar é chamar a atenção para que seja criado um grande Programa Nuclear no Brasil o qual quebre o paradigma com base na experiência de França, Coreia do Sul, China e EUA, para que possamos desenvolver e construir usinas nucleares em série, e que ele venha atrelado também com grandes programas de desenvolvimento industrial e de recursos humanos, aprimoramento das universidades e centros técnicos. Que esse Programa Nuclear seja feito com a descentralização da localização. É preciso que não só o Sudeste, mas as outras regiões brasileiras possuam usinas nucleares. Conheço um pouco mais de perto o sistema elétrico no Nordeste. Temos uma grande quantidade de usinas eólicas, o que tornam o sistema muito volátil por conta da intermitência dessa fonte e, também, da solar. É preciso compensar. Hoje, usinas como as do Rio São Francisco, algumas do Sudeste e até mesmo Itaipu estão segurando a flutuação das plantas eólicas do Nordeste como reserva girante. É importante que usinas nucleares venham, o mais rápido possível, para o Nordeste para que possamos colocar uma boa quantidade de energia de base na região e assim aliviar as hidrelétricas do Rio São Francisco, e demais usinas hidrelétricas do país.
Por fim, gostaria de frisar a importância de chamar a atenção que temos aqui no Nordeste um sítio já estudado e que reúne excelentes condições para abrigar uma central nuclear. Ele fica em Itacuruba/PE e, inclusive, consta no programa da chapa encabeçada pelo Arcuri o apoio da ABEN à Central Nuclear de Itacuruba, entre outros sítios. Precisamos fazer uma sequência de usinas no Brasil para que possamos nos desenvolver. Temos fôlego e competência para isso. Resta uma decisão política para orientar os vetores nessa direção, de modo que acho que este é o recado mais forte que poderia deixar. É um recado na área energética e, especificamente, na nuclear, e assim criar as bases para o crescimento e desenvolvimento do nosso País.
Que mensagens você gostaria de passar ao novo governo em relação à área nuclear como um todo?
Falando muito brevemente, mas objetivamente, o fortalecimento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) é fundamental para o desenvolvimento da ciência e tecnologia em geral e, particularmente, a área nuclear. Nesse sentido, destacamos a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen) e toda a sua estrutura e recursos humanos. É fundamental dar início à construção do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB), que irá produzir radioisótopos e fontes radioativas para as áreas de saúde, indústria, agricultura e meio ambiente, bem como a realização de testes de materiais e de combustíveis nucleares. Tudo em uma escala compatível com a demanda necessária para o bom atendimento da necessidade do País.
É importantíssimo dar início ao funcionamento da Autoridade Nacional de Segurança Nuclear (ANSN) em consonância com as orientações da AIEA e com os recursos humanos e a dotação orçamentária compatíveis com as necessidades de licenciamento de novos sítios e construção de novas usinas e de instalações nucleares em geral. Também é importantíssimo iniciar a construção do Repositório Nacional de Rejeitos Radioativos de Baixo e Médio Níveis de Radiação, que agora passará a ser o Centro Tecnológico Nuclear e Ambiental (Centena), cujo objetivo é armazenar definitivamente os rejeitos radioativos e que contará com edificações de apoio operacional e instalações para pesquisa e desenvolvimento tecnológico.
Na área da Defesa Nacional, chamo a atenção para a necessidade de acelerar a construção do Submarino com Propulsão Nuclear Brasileiro (SN-BR). Esse projeto é muito relevante para a patrulha e proteção da imensa costa brasileira, que conhecemos como “Amazônia Azul”, pois, como sabemos, esse tipo de embarcação oferece vantagens extras em comparação aos modelos convencionais em termos de autonomia e navegação.
Finalizo destacando o ciclo do combustível nuclear, tecnologia já dominada pelo Brasil. É importante lançar as bases para que o combustível nuclear seja totalmente fabricado no País. Esse ganho de escala poderia ser viabilizado olhando o grande mercado internacional, em curto prazo e, ampliando o horizonte, com a entrada de Angra 3 e de novas centrais. São esses os pontos que destaco, salientando que existem muitos outros, pois o setor nuclear e suas aplicações são bastante abrangentes. Lembro sempre que trabalhar pela ciência, tecnologia e energia nuclear é desenvolver o Brasil!
Imagens: Selo comemorativo aos 40 anos de fundação da ABEN e Carlos Henrique da Costa Mariz/Acervo ABEN