A cada segundo, 65 bilhões de neutrinos, um tipo de partícula emitido por certas reações nucleares, atravessa cada centímetro quadrado da superfície terrestre provenientes do Sol. E chegam, incólumes, do outro lado do nosso planeta, sem sofrerem praticamente nenhum tipo de interação. Tão fantasmagóricos assim, em que eles poderiam ser úteis para nós?
Em primeiro lugar, porque reatores nucleares são também fortes emitentes de neutrinos: um reator como o de Angra 2 emite cerca de 1 seguido de 21 zeros neutrinos por segundo. (Corrigindo para melhor: na verdade, antineutrinos, isto é, a antimatéria correspondente ao neutrino). Em segundo lugar porque, desde a década de 1950, os físicos descobriram como detectar neutrinos, através de um tipo de reação nuclear conhecida como “decaimento beta inverso”.
E como os neutrinos atravessam sem serem perturbados todo o séquito de blindagens externas de um reator, surgiu a ideia de monitorar à distância esses reatores. É possível inclusive conhecer o tipo e a constituição do combustível nuclear pela “pegada” que os neutrinos por ele emitidos deixam no detector, conhecida tecnicamente como seu “espectro” de energia, ou seja, pela distribuição de energia dos neutrinos.
Assim, com o aperfeiçoamento dos detectores de neutrinos, se poderia saber, de maneira não invasiva, a quantidade de cada isótopo presente no combustível nuclear, como urânio-235, urânio-238, plutônio-239 e plutônio-241, o que permitiria detectar desvios de material radioativo para outras finalidades que não a geração de energia.
Tudo isso pode parecer coisa de outro mundo, feita só lá fora. Mas aqui mesmo, colados à usina nuclear de Angra 2, há dois detectores de neutrinos em um mesmo contêiner já em pleno funcionamento. São dois projetos, o Neutrinos-Angra (construído e projetado por uma equipe exclusivamente brasileira!) e o CONNIE (fruto de uma colaboração internacional).
O primeiro gerou vários artigos relacionados ao desenvolvimento do detector e de sua instrumentação, e atualmente tenta superar o seu maior desafio: detectar neutrinos operando na superfície terrestre, onde a taxa de contaminação por raios cósmicos (radiação que vem do espaço, constituída principalmente por partículas chamadas múons) é muito grande. Seu detector tem também capacidade de monitorar movimentações de combustível nuclear nas proximidades da usina, fornecendo outra aplicação importante na área de salvaguardas (controle de material nuclear). Já o Projeto CONNIE forneceu resultados úteis para a física fundamental.
Mas será que tudo isso vai ser realmente útil para a Engenharia Nuclear? O que a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica, órgão da ONU) acha disso? É o físico João dos Anjos, até recentemente coordenador do Projeto Neutrinos-Angra, quem responde: “A AIEA tem suas próprias formas de controle das atividades nucleares dos países que fazem parte do tratado de não proliferação de armas nucleares, mas apoia as pesquisas sobre o monitoramento de reatores nucleares através da detecção de antineutrinos de reatores. Portanto, pesquisas relacionadas a detectores como o do experimento Neutrinos-Angra atuam na busca por avanços dos meios de controle do uso de combustíveis nucleares, e inserem o Brasil como país desenvolvedor e aliado de políticas de salvaguardas da AIEA. Além disso, o experimento Neutrinos-Angra foi completamente projetado e construído em solo nacional, tendo papel fundamental na formação de vários profissionais e criando know-how brasileiro.”
Não é só isso: há um projeto bem-sucedido e financiado pela iniciativa privada, o Projeto Cosmic Scale, que representa um desdobramento (ou spin-off) do Projeto Neutrinos-Angra. Luis Fernando Gonzales, pesquisador do Grupo de Neutrinos da Unicamp, transferiu a tecnologia dos detectores e a eletrônica dos sistemas de análise de dados usados no projeto de Angra para o Cosmic Scale, que tem verba da Mineradora Anglo American.
O Cosmic Scale é uma aplicação comercial derivada da Física de Altas Energias que tem como objetivo medir o peso de objetos de grandes dimensões, como o de uma montanha ou uma pilha de minério. Usa para isso a atenuação causada por esse objeto no fluxo de múons da radiação cósmica. O sistema, em desenvolvimento, já está em operação ininterrupta desde março de 2021 no túnel da Mineradora Anglo American em Conceição do Mato Dentro (MG).
A notícia foi publicada originalmente no site do Instituto de Engenharia Nuclear (IEN/Cnen).
Reportagem e texto de Henrique Davidovich (o autor e o IEN/Cnen agradecem a ajuda do colaborador do CBPF, o Prof. João dos Anjos, na elaboração dessa matéria)
Foto em destaque: Vista do prédio do reator da usina nuclear de Angra 2, com o contêiner onde estão os dois detectores de neutrinos circulado em vermelho e apontado por uma seta. Os detectores se situam a cerca de 30 metros do núcleo do reator, o qual está dentro do prédio / Colaboração Neutrinos-Angra
Fonte: Setor de Comunicação Social do Instituto de Engenharia Nuclear (IEN/Cnen)