Com as atribuições de difundir informações sobre as aplicações pacíficas da energia nuclear em diferentes campos da vida humana e de promover, cada vez mais, uma maior integração entre a comunidade nuclear e a sociedade brasileira há quarenta anos, que serão completados no dia 7 de dezembro deste ano, a Associação Brasileira de Energia Nuclear – ABEN entrevista o seu primeiro presidente (1982-1984), Antonio Carlos de Oliveira Barroso.
Atualmente sócio de uma empresa startup baseada em São Paulo que atua nas áreas de analytics (análise computacional sistemática de dados ou estatísticas), mineração de textos e prospecção, o engenheiro mecânico graduado na UFRJ e detentor de títulos de mestrado e doutorado na área nuclear ressalta que “queríamos criar uma associação de viés científico, mas que também pudesse mobilizar o setor nuclear como um todo”.
Na época em que foi fundada, há quatro décadas, o Brasil vivia um Regime Militar e se preparava para operar sua primeira usina nuclear, Angra 1, bem como previa construir oito reatores de potência no âmbito do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, assinado em 1975 – Angra 2 e 3 estavam no pacote. Além de relembrar tais fatos históricos, Barroso comenta sobre reatores de pesquisa (IEA-R1, TRIGA IPR-R1 e Argonauta) que já estavam em operação no País, Pesquisa & Desenvolvimento nacionais e dificuldades e desafios superados pela ABEN em seus primórdios.
Antonio Barroso ainda transmite uma mensagem otimista. “Pesquisei sobre o crescimento de patentes na área nuclear no mundo e me surpreendi. A área está muito viva! Há muita novidade, principalmente em aplicações, controle e data science. Quando entrei no setor, a promessa seria de que área nuclear teria muito futuro, e isso está acontecendo agora”, declara.
Confira, abaixo, a entrevista com o primeiro presidente da ABEN, Antonio Carlos de Oliveira Barroso.
O senhor foi o primeiro presidente da ABEN (1982-1984). Poderia fazer um resgate histórico do contexto de criação da nossa Associação, a qual foi fundada, coincidentemente, no ano da primeira criticalidade da usina nuclear Angra 1?
Não sei se vou fazer justiça àqueles que se movimentaram na época para a criação da ABEN porque, infelizmente, não lembro de todos os nomes. Peço desculpas se omitir algum. Na época, eu trabalhava na Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), na parte regulatória, mas também dava aula no Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe/UFRJ) como professor colaborador de Engenharia Nuclear. Em 1982, eu coordenava, pela Cnen, um grupo de análise em Engenharia Mecânica do licenciamento de Angra 1. Depois acumulei a coordenação do licenciamento de Angra 2. O Julio Menegassi, da Companhia Energética de São Paulo (Cesp), me contatou por telefone e veio ao Rio de Janeiro. Aí mobilizei o pessoal do Programa de Engenharia Nuclear da Coppe/UFRJ – acho que o Luiz Fernando Seixas de Oliveira era o coordenador. Começamos a nos movimentar e entramos em contato com o pessoal de Furnas: Ronald Araújo da Silva, chefe da Coordenação de Licenciamento e Garantia da Qualidade, e Wanderley Luiz Desordi, chefe do Departamento de Combustível e Segurança Nuclear. Em seguida, entramos em contato com o pessoal da Nuclebrás Engenharia S/A (Nuclen) e fui informado que tinham elaborado um estatuto há um tempo, um documento bem mais completo do que o que tínhamos redigido. Fundimos os dois textos, flexibilizando um pouco, e aceleramos a mobilização em prol da fundação da ABEN.
Na época, o Brasil vivia um Regime Militar. Assim, manifestações de cunho político eram controladas e censuradas. Mas, quando tomou um certo corpo, levei a ideia ao Doutor Rex Nazaré Alves, figura proeminente da área e, na época, um dos diretores-executivos da Cnen. O presidente, se não me engano, era o professor Hervásio Guimarães de Carvalho. O Rex virou presidente logo em seguida, em 1982. Perguntei a ele se a Cnen teria uma sala e um telefone para nos ceder. A reposta foi positiva, mas ele ressaltou a delicadeza da questão política. Nossa missão era sermos os mais ativos possíveis, considerando o contexto. Começamos a colher assinaturas para a fundação da ABEN. Na época, havia um certo afastamento do pessoal da Universidade com o da Nuclen; as posições eram desencontradas. A Nuclen ressaltava que o programa era da Alemanha, e isso não favorecia pesquisas nacionais, bandeira da Universidade. Fui chamado para ser o primeiro presidente porque não houve tantas assinaturas da Nuclen para a fundação da ABEN e eu tinha bom relacionamento com o pessoal de Furnas, que depois virou Eletronuclear. Assim, encabecei a chapa. Fundamos a ABEN com cerca de 60 associados e quando entreguei o mandato, em 1984, tínhamos aproximadamente 600. Oferecíamos as modalidades de pessoa física e de empresa, que não votava. As empresas pagavam mais, tinham direito a indicar representantes, mas não votavam.
Aproveitando que você citou a primeira criticalidade de Angra 1, ela ocorreu em um domingo de março de 1982. Eu e um colega estávamos acompanhando de uma sala no quarto andar da Cnen com um telefone vermelho, que ligava diretamente para a sala de controle da usina. Estávamos fazendo o Imposto de Renda e reproduzindo o gráfico da subida de reatividade do reator. Foi algo muito interessante. Angra 1 entrou efetivamente em operação comercial em 1985.
Como era o funcionamento da ABEN nos primeiros meses de existência?
O primeiro escritório foi no quarto andar da Cnen, em Botafogo. Era uma sala pequena, onde antes havia uma xerox, e compartilhávamos o espaço com a Associação Brasileira de Direito Nuclear. Depois, com mais sócios e recursos, a ABEN pôde alugar uma sala própria na Rua da Passagem, também em Botafogo, no Rio de Janeiro. Mas eu já não era mais o presidente. No início, a ABEN não tinha funcionários, apenas alguém que prestava serviços administrativos. Compartilhamos junto com a Associação Brasileira de Direito Nuclear um funcionário para atender os dois telefones. Na minha época, a Diretoria da ABEN aplicava dinheiro em poupança e tinha uma conta para pagamento de despesas ordinárias. Era muito artesanal, mas todos se esforçavam muito. A receita da ABEN era constituída pelas anuidades dos sócios. Acho que Cnen, Furnas e Eletrobras eram sócios institucionais.
Logo que criamos a ABEN, tomamos a dianteira para organizar o Encontro de Física de Reatores e Termohidráulica – ENFIR, que depois acarretou no Congresso Geral de Energia Nuclear – CGEN. Organizamos o primeiro CGEN pela ABEN, mas o ENFIR já existia há uns seis anos quando a ABEN foi criada. Se não me engano, a mobilização pelo CGEN começou na minha gestão, mas a efetiva realização foi no mandato seguinte, do presidente Marco Marzo (1984-1986). O CGEN foi o esqueleto da International Nuclear Atlantic Conference – INAC. Sobre o crescimento de sócios, tenho que destacar que uma grande parte se deve ao fato de que muitos se interessaram em controlar a ABEN. Foi um convencimento de adesão de sócios pela “boa inveja”, ou seja, mais gente se inscrevendo para chegar firme na eleição.
A que atribui a criação de uma Associação de pesquisadores e técnicos da área nuclear?
Na época, eu era sócio da Associação Brasileira de Engenharia e Ciências Mecânicas – ABCM. No Brasil, começava o movimento de organização de várias associações de cunho científico. A maioria do pessoal da área nuclear era sócia da American Nuclear Society – ANS. Já tínhamos o ENFIR, então queríamos criar uma Associação de viés científico, mas não apenas isso. A ideia era originar uma Associação que pudesse mobilizar o setor nuclear como um todo. É claro que isso seria mais difícil em 1982 por causa do Regime Militar, mas gradativamente a ABEN foi ganhando espaço. O perfil dos presidentes já a partir da época do Alfredo Tranjan (1994-1996) é o de falar na imprensa e tomar a defesa da área nuclear. O Regime Militar era pró-nuclear, mas de uma forma que não agradava tanto aos técnicos e cientistas, porque era focado no Programa Brasil-Alemanha. No entanto, o Regime Militar também mudou um pouco a posição em relação à tecnologia – se importava da Alemanha ou se desenvolvia em casa. Além disso, foi criado o Programa Nuclear Paralelo. Quando acabou o Regime Militar, o pessoal da ABEN começou a ter um papel mais proativo. A ABEN sempre teve um forte cunho técnico-científico, mas ressalto que não queríamos apenas isso – queríamos mobilizar o setor.
A primeira usina do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, Angra 2, começou a ser construída em 1981, desacelerou em 1983, parou de vez em 1986, foi retomada no fim de 1994 e entrou em operação comercial em 2001. Qual a visão que a ABEN tinha na sua época de presidente sobre o Acordo?
A bandeira da ABEN era mais comedida. Não acreditávamos ser factível construir, naquela época, oito usinas nucleares. Também não falávamos isso publicamente, até porque era Regime Militar. Achávamos que a crise econômica inibiria a construção de tantas usinas e que deveríamos aproveitar o hiato para fazer pesquisas, com o objetivo de aumentar a nacionalização do setor. Fizemos muito estudos, incluindo em áreas correlatas. Defendíamos a construção de Angra 2, mas tenho que dar o mérito ao Ronaldo Fabricio. Ele foi quem articulou com todas as pessoas, na época em que o José Mauro era presidente da Cnen. Existiam financiamentos para Angra 2 e 3. O Ronaldo Fabricio conseguiu repassar o financiamento que seria para Angra 3 para Angra 2. Assim, Angra 2 foi acelerada. Se isso não fosse feito, teríamos o risco de hoje ter tanto Angra 2 quanto Angra 3 em construção. O Ronaldo Fabricio era o presidente da Eletronuclear na época.
Na sua época como presidente da ABEN, o Brasil possuía três reatores de pesquisa em operação (IEA-R1, TRIGA IPR-R1 e Argonauta). A ABEN defendia a construção de mais reatores nucleares de pesquisa?
Na época, havia a ideia de construir um reator produtor de radioisótopos, mas ainda era algo incipiente. Não estavam projetando um reator maior que o IEA-R1, instalado no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen/Cnen). Esse sonho veio mais forte na década de 1990; eu trouxe isso à baila já como diretor da Cnen, mas faltava verba. Muitos topariam financiar, desde que fosse feito com o projeto de alguma empresa de fora e houvesse uma parceria para fazer codesign. Seria um avanço, pois o Brasil precisava produzir radioisótopos. O País tinha uma disposição muita clara na época, acho que no Governo FHC, de não adquirir nenhum empréstimo de fora, mesmo sendo pequeno. No Governo Lula começou a ser alocado mais dinheiro para Ciência e Tecnologia graças aos fundos, criados no início dos anos 2000 com recursos dos setores de energia e de petróleo. Ocorreu um boom das commodities e o Brasil começou a arrecadar muito a partir de 2003. Foi o auge do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) em matéria de orçamento.
A ciência brasileira é ótima, somos de primeiro mundo em algumas áreas. A nuclear tem uma parte que possibilita a abertura de pequenas empresas, mas a área de produção de energia é muito intensiva em capital. Uma usina nuclear demora pelo menos seis anos do ponto zero até partir em operação. Às vezes, em seis meses uma ideia vira um produto disponível em outros setores. Então, nesse tipo de nicho, ciências aplicadas, há grande disponibilidade de financiamento. Na área nuclear de potência, é preciso um planejamento de longo prazo, e às vezes isso não acontece. A área de aplicação de radioisótopos pode desenvolver uma ciência forte e consistente mais rapidamente.
Qual a sua experiência profissional no setor nuclear?
Ela tem algumas facetas. Comecei na área regulatória em 1977 e, ao mesmo tempo, durante três anos, dei aulas na Coppe/UFRJ como professor colaborador. Alguns fatos anedóticos me marcaram. Na área regulatória, modelamos os cálculos de verificação de análise de tensões com base em diagramas isométricos de projeto, mas, muitas vezes, o que é construído tem diferenças do que está na planta. Periodicamente, fazíamos inspeções de conformidade, para conferir se o que estava construído batia com o exposto nas plantas. Um dia, entrei no circuito primário de Angra 1. Sou um dos poucos que fizeram isso, que agora é impossível, porque é radioativo. Quando eu entrei, a usina estava em montagem. Outro fato interessante foi quando comecei a ter contato com o que se fazia aqui em São Paulo (onde atualmente moro) – o desenvolvimento do Programa Nuclear Paralelo, no início dos anos 1980. Eu morava no Rio de Janeiro e acabei ficando em São Paulo.
Aqui em São Paulo trabalhei na parte de simulação e coordenação de experimentos durante um período, até que as verbas caíram muito na Marinha. Em 1994, o José Mauro Esteves dos Santos foi chamado para ser presidente da Cnen e, a seu convite, eu me tornei um dos diretores. A Cnen tinha duas diretorias no Rio e uma em São Paulo, a de P&D. O José Mauro travava reuniões com diretores toda semana e eu tinha que fazer ponte aérea. Viajei muito na época, a trabalho, e isso me proporcionou um descortino muito grande, pois comecei a frequentar a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Fui diretor de P&D da Cnen por nove anos e, nos últimos seis meses, acumulei a presidência porque o José Mauro foi para a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (Abacc) no fim de 2002, antes do Governo Lula entrar (2003). Eu sabia que não iria continuar como presidente da Cnen, porque viria alguém da coalizão, mas procurei fazer o máximo que podia dentro dessas circunstâncias. Fiz reuniões com meu sucessor, o professor Odair Dias Gonçalves, e detalhei aspectos internos da Cnen.
Deixei de ser diretor da Comissão, continuei no Ipen e me aposentei em 2014. Também dei aula na Pós-Graduação em Tecnologia Nuclear do Ipen de 2001 até dois ou três anos atrás. No período de 2000 a 2002, se não me engano, coordenei os esforços do Brasil em um projeto chamado Reator IRIS (International Reactor Innovative and Secure). Era um pool com uns dez países e umas 20 instituições entre universidades e indústrias capitaneado pelo Mario Carelli, da Westinghouse. Nunca chegou ao mercado, mas foi um projeto que gerou inúmeros spin-offs. Também fui da Comissão Deliberativa da Cnen e membro suplente (alternate governor) do Brasil na AIEA. Lá também fiz parte, durante uns seis anos, do Standing Advisory Group for Nuclear Applications (Sagna), grupo de assessoria para o diretor-geral. Ainda fui membro, durante dois anos, do Conselho do Halden Reactor Project, reator para teste de materiais na Noruega, e presidente da Latin American Section of the American Nuclear Society (LAS/ANS).
O senhor gostaria de dar uma palavra final?
Recentemente ministrei palestra sobre criatividade e inovação para o pessoal da Engenharia da UFRJ. Pesquisei antes sobre o crescimento de patentes na área nuclear no mundo e me surpreendi. A área está muito viva! Quando comparei o crescimento de patentes relacionadas a reatores químicos com o de reatores nucleares, percebi que a quantidade de patentes é muito maior para os nucleares. Há muita novidade, principalmente em aplicações, controle e data science. A área nuclear está cada vez mais inserida no contexto ESG – Environmental, Social and Governance. Amigos meus, verdes de longa data, estão mais amistosos com a área nuclear. Quando entrei no setor, a promessa seria de que ele era do futuro, e isso está acontecendo agora.
+ ABEN lança selo comemorativo aos seus 40 anos de fundação
Foto 1: Antonio Carlos de Oliveira Barroso atualmente / Acervo pessoal
Foto 2: Antonio Carlos de Oliveira Barroso na época de presidente da ABEN / Acervo ABEN