ARTIGO | Nuclear, Hidrelétrica e a Transição Energética

ARTIGO | Nuclear, Hidrelétrica e a Transição Energética

As publicações sobre medidas contra o aquecimento global têm se caracterizado por limitar-se à geração de energia elétrica e, mais ainda, a concentrar-se em uso de solar fotovoltaica e eólica como solução única para tal objetivo. Esquecem-se de outras fontes de energia limpa como hidrelétrica, nuclear, biomassa e geotérmica.

Interessante esse esquecimento, pois, caso considerem a chamada pegada de carbono, ou seja, as emissões de ciclo completo desde a origem dos componentes até o final do ciclo de vida de cada uma dessas formas de gerar eletricidade, verificarão os seguintes valores de emissão (em toneladas de CO2) por GWh: Carvão, 979; Gás Natural, 462; Biomassa, 253; Fotovoltaica, 53; Geotérmica, 42; Hidrelétrica, 26; Nuclear, 13; e Eólica, 12. Portanto, Fotovoltaica, a de menor custo de investimento, é a de maior montante de novas instalações, porém, possui o dobro das emissões de hidrelétrica e quatro vezes a de nuclear.

Com a extraordinária redução do custo de investimento de fotovoltaicas e eólicas na última década, essas fontes passaram a ter indubitavelmente a preferência para novos investimentos. No entanto, ambas são intermitentes e apresentam fator de capacidade menor do que outras fontes limpas de energia. Enquanto fotovoltaicas possuem fator de capacidade médio ao redor de 25%, e eólica de 35%, hidroelétricas são superiores, com 45% e nuclear muito superiores, com acima de 90%.

Esse baixo fator de capacidade dessas fontes renováveis exige que outras fontes e baterias sejam necessárias para atender a energia consumida pelas cargas durante as 24 horas do dia. Isto além da necessidade de ter-se fontes despacháveis permanentemente conectadas à rede. Com isso, a redução de emissões do sistema com forte participação de solar, por exemplo, não necessariamente se materializa, como deveria ser esperado.

A experiência na Califórnia ilustra este ponto. Apesar da transição do carvão para o gás natural até 2017, a adição subsequente de fontes de energia renováveis variáveis e de armazenamento em baterias não diminuiu ainda mais a intensidade do carbono. Isto ocorre porque devido à intermitência das fontes de energia renovável, o estado continua a depender do gás natural, adiando repetidamente a eliminação das antigas centrais elétricas a gás. Além disso, à medida que as fontes de energia renováveis são expandidas, a eficiência das centrais a gás diminui, anulando os benefícios ambientais previstos. O gráfico abaixo exemplifica¹.

Gráfico Califórnia/EUA
Divulgação (clique na imagem para ampliar)

Além dessas novas fontes renováveis terem menor fator de capacidade, possuem também muito menor ciclo de vida. Enquanto uma hidrelétrica bem mantida e renovada pode gerar eletricidade por até 100 anos e uma nuclear pode até passar de 60 anos, fotovoltaicas podem alcançar 25 a 30 anos. Portanto, o total de GWh gerados durante a vida útil de uma nuclear fica ao redor de 15 vezes o total gerado por uma fotovoltaica.

Outro aspecto de grande vantagem das centrais nucleares é o uso da terra. Comparemos o espaço ocupado por uma central fotovoltaica com nucleares. A usina de Barreiras, por exemplo, com 350 MW ocupa uma área de 811,72 hectares, enquanto Angra 1, com 640 MW, ocupa 3,8 hectares e Angra 3, com 1.200 MW, 9,4 hectares, portanto a área ocupada por usina fotovoltaica por MW instalado é superior a 300 vezes à área de uma nuclear.

Interessante este aspecto de uso da terra pois este tem sido um dos grandes argumentos contra hidrelétricas com reservatório por inundar terras. É verdade que reservatórios inundam áreas adjacentes aos rios. Áreas essas que em boa parte são inundadas pelas enchentes frequentes dos rios. Porém, esquecem esses críticos dos benefícios que os reservatórios traem como: pagamento de royalties para o município alagado; regulação do rio diminuindo fortemente os efeitos de inundações e de secas; perenização do suprimento de água para populações; criação de possibilidade de fazendas de piscicultura; uso turístico do lago; e, até instalação de painéis fotovoltaicos no lago.

E, além de gerar eletricidade, que benefício traz a fotovoltaica para o uso da terra? E o risco de contaminação caso uma tormenta (de granizo) destrua painéis? E o desmatamento de áreas de caatinga como na Serra de Uibaí em Ibipeba, BA? Os que se opõe a reservatórios não comparam?

Outro problema das eólicas e fotovoltaicas é que, por sua intermitência, o sistema necessita ter reserva de energia e outras fontes despacháveis operando juntamente para fazer o seguimento de carga. Hidrelétricas servem excelentemente para essa função, embora a variação de sua geração durante o dia resulte em variação das descargas de água no rio que podem trazer problemas para as populações ribeirinhas. Em relação a isso, alguns poderiam argumentar que nucleares não têm capacidade de fazer seguimento de carga, ou seja, operam com geração constante, sem variação. Isto era verdade, mas não é mais assim. No site da EdF pode-se verificar que suas nucleares têm capacidade de variar geração. E as novas usinas, em especial as SMR, estão sendo anunciadas, como o caso da AP300 da Westinghouse, como tendo capacidade de operar conjuntamente com usinas intermitentes ajudando o seguimento de carga.

Outra preocupação antiga sobre nucleares diz respeito aos riscos de acidentes. Acidentes realmente ocorrem com todas as tecnologias. Os que viajam de avião, sabem que existe risco, mas seguem viagem pois sabem que o risco é muito pequeno. O mesmo ocorre com nucleares.

Todo acidente provém de falhas tecnológicas, falta de medidas para evitá-los, falta de treinamento de operadores, falhas humanas, e falta de medidas para limitar as consequências do acidente. Acidentes ocorridos são usados para evolução das diversas tecnologias. Todos assistem na TV a programas que mostram a seriedade das análises dos acidentes aéreos para aprimoramento da tecnologia das aeronaves, técnicas e procedimentos de manutenção e treinamento de todos envolvidos, inclusive na operação. O mesmo ocorre com todas as outras tecnologias, inclusive usinas nucleares.

A tecnologia mais utilizada para reatores em todo o mundo é a de água leve, de modo que hoje 69% da capacidade mundial é PWR e 20% BWR. O primeiro PWR totalmente comercial de 250 MWe, Yankee Rowe, começou a funcionar em 1960 e operou até 1992. Enquanto o primeiro comercial BWR, Dresden -1 de 250 MWe, operou no início de 1960.

O mundo tem em operação 471 usinas nucleares, sendo que por mais de 70 anos houveram TRÊS acidentes. O primeiro, um reator PWR, “Three Miles” (em 1979) resultou de várias falhas de tecnologia, e de treinamento de operadores, porém nenhum efeito radioativo resultou em danos locais ou pessoais. A análise desse acidente trouxe muitos ensinamentos e melhorias tanto para a tecnologia como para o pessoal envolvido.

O segundo acidente foi o de “Chernobyl” (em 1986), um reator com tecnologia da URSS, e resultou de uma experiência inadequada com graves resultados. Uma catástrofe que não deve ser considerada como acidente pois teria sido totalmente evitável. Como consequência, mesmo para outros tipos de reatores, procedimentos de controle mandatórios foram implementados para evitar repetição.

O terceiro acidente, “Fukushima” (2011), um BWR, resultou de um terremoto seguido de tsunami. Realmente um acidente climático terrível. Porém, a causa do acidente com os reatores foi a falta de energia de serviços auxiliares cuja geração ficou inabilitada pela inundação causada pelo Tsunami. Novamente, a lição aprendida resultou que os reatores modernos possuem circuito de resfriamento mais adequado que permite sua operação mesmo sem serviços auxiliares.

Portanto, o risco de acidentes é mínimo, e mais, a indústria possui níveis adicionais de contenção em casos de acidentes e procedimentos de defesa das áreas próximas às usinas.

Isto posto, porque não considerar nuclear como parte da solução de transição energética?

Ah, diriam os críticos, pelo prazo de construção e custos.

Verdade, os prazos são maiores que os de fotovoltaicas. Porém, nucleares (e hidrelétricas) podem ser consideradas no planejamento e terem suas construções iniciadas com o prazo suficiente para atendimento adequado das cargas. Assim fizemos no Brasil por várias décadas com a construção do parque hidrelétrico que possuímos.

A propósito. Muitos se orgulham que o Brasil possui uma matriz de geração de eletricidade das mais limpas do mundo. Isso se deve a termos tido um planejamento adequado, no passado, e, por preocupação com a importação de petróleo (cujo custo e oferta foi motivo de “arma econômica” na década de 70), termos dado preferência a hidrelétricas. Porém essa preferência não foi feita com subsídios, como ocorre hoje com fotovoltaicas e eólicas, mas com uma política que resultou na criação de tecnologia nacional no projeto e construção de hidrelétricas e na fabricação de seus equipamentos.

Quanto aos custos, evidentemente são parcela muito importante na decisão dos investimentos. Porém, não podem as decisões serem tomadas apenas nos custos de investimento de curto prazo, imediato. A cadeia completa de ciclo de vida, a confiabilidade do sistema, e a transmissão da eletricidade, ou seja, o conjunto dos investimentos para atender o mercado dentro de determinado padrão de confiabilidade, deve ser considerado. E nesse contexto, hidrelétricas e nucleares devem ser consideradas.

O advento de Small Modular Reactors (SMR) poderá contribuir para redução desses dois aspectos, pois sendo modulares e de menor porte muito provavelmente poderão ser instaladas em prazos menores e por sua modularidade, uma vez o mercado se estabilize, também poderão ter custos mais reduzidos. Uma outra vantagem de SMR será a possibilidade de poderem ser instaladas mais próximas do centro de cargas e com isso melhorar a localização e montante de reserva girante, auxiliando a confiabilidade operativa do sistema.

Outro aspecto a considerar no planejamento e decisões de investimento, refere-se ao aspecto até contraditório de a transição energética visar reduzir os efeitos do aquecimento global e este aquecimento provocar fenômenos climáticos que afetam negativamente as fontes renováveis. Assim, embora no Brasil a matriz elétrica conte com fortíssima participação de fontes renováveis, ironicamente, esse alto grau de renovabilidade aumenta a sua vulnerabilidade diante dos eventos climáticos extremos. Nuclear pode reduzir esse risco.

Um último aspecto diz respeito a incertezas quanto ao suprimento de componentes. O surto de novos investimentos em fontes alternativas, que deve ser continuado, concomitantemente com a substituição da frota de veículos a combustão interna por elétricos, pode, e talvez, deve causar forte pressão sobre componentes básicos de materiais críticos tanto a um com outro desses setores.

O exemplo de países que decidiram abandonar fontes de energia confiáveis por fontes de custo menor imediato, como o gás natural na Europa que se mostrou ausente por problemas geopolíticos, devem ser considerados na segurança do suprimento energético.

Assim vemos a declaração do novo Primeiro Ministro (PM) do Reino Unido, Keir Starmer: “Nuclear é parte do Futuro. Vejo o futuro deste país com uma mistura de fontes renováveis com nuclear para prover energia ao nosso país por várias décadas futuras”.

Concordo com o Primeiro Ministro, que embora com formação na área de direito fez essa afirmação que faz mais sentido do que as que muitos especialistas no campo energético têm emitido. Passada a euforia atual por fontes fotovoltaicas, o setor elétrico terá que considerar seriamente fontes de maior fator de capacidade e ter-se um mix de geração mais apropriado.

No caso do Brasil devemos reconsiderar o modelo existente. Atualmente, embora a EPE efetue estudos de planejamento, o sistema tem seu aumento de capacidade como resultado dos leilões de geração. Como nesses leilões, como deveria ser, ganha a oferta de menor custo de investimento, as decisões se baseiam no menor custo de investimento especifico. Não é considerado o custo de transmissão, nem a confiabilidade do sistema, nem a reserva de energia, nem o ciclo de vida (anos de duração da capacidade de geração). Ou seja, não se considera a economicidade da solução para o sistema de forma global como fazíamos no passado.

Enquanto mantivermos essa sistemática teremos excesso de capacidade instalada e confiabilidade do sistema a prêmio.

O artigo foi publicado originalmente no site Diário do Poder em 20/07/24.

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Autor: Armando Ribeiro de Araujo – Consultor de Transmissão e Geração de Energia
Imagem em destaque: Freepik

Fonte: Diário do Poder