Por Leonam dos Santos Guimarães
Em 8 de dezembro de 1953, o então presidente dos Estados Unidos, Dwight D. Eisenhower, proferiu na Assembleia Geral das Nações Unidas um discurso que ecoaria através das páginas da história. Conhecido como “Átomos para a Paz”, marcou uma guinada crucial na maneira como o mundo encarava a energia nuclear e suas aplicações.
Neste discurso, Eisenhower delineou sua visão para o uso pacífico da energia nuclear e a promoção da cooperação internacional no campo da energia nuclear. Em 2023 celebramos o septuagésimo aniversário deste discurso emblemático que destacou a necessidade de utilizar o poder da ciência nuclear em benefício da humanidade.
O contexto histórico desse discurso era crucial, uma vez que os EUA haviam lançado as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki no final da Segunda Guerra Mundial, marcando o início da era nuclear. O mundo estava profundamente ciente dos perigos associados à energia nuclear, e a Guerra Fria estava no auge. As armas nucleares tornaram-se um símbolo de poder e uma ameaça à sobrevivência da humanidade.
Eisenhower, um general condecorado da Segunda Guerra Mundial, que comandou as tropas aliadas na retomada da Europa, compreendeu o potencial destrutivo da energia nuclear, mas também vislumbrou o potencial que ela tinha para usos civis. O discurso foi uma tentativa de mudar o rumo da história, enfatizando o compromisso com o uso pacífico da energia nuclear.
O conceito central do discurso “Átomos para a Paz” era o compartilhamento de conhecimento e tecnologia nuclear com outras nações, desde que fosse para fins não explosivos. Eisenhower reconheceu o potencial da energia nuclear não apenas como uma ameaça, mas como uma oportunidade de benefício global
Em seu discurso, Eisenhower expressou sua visão de um mundo onde a energia nuclear poderia ser uma força para o bem. Ele propôs a criação de uma agência internacional que supervisionaria o uso pacífico da tecnologia nuclear e promoveria a colaboração global. O presidente dos Estados Unidos enfatizou que o conhecimento nuclear deveria ser compartilhado para promover o desenvolvimento econômico e o bem-estar das nações, trazendo progresso para toda a humanidade.
O discurso de Eisenhower também destacou a importância do desarmamento nuclear e a necessidade de controlar a proliferação de armas nucleares. Ele instou outras nações a se unirem no esforço de garantir que a energia nuclear fosse usada exclusivamente para fins pacíficos, o que conduziu em pouco mais de uma década ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP). E levou à criação da Agência Internacional de Energia Atômica em 1957, uma organização dedicada a promover o uso pacífico da energia nuclear e monitorar seu uso para garantir que não seja desviado para fins explosivos.
A Aiea desempenha desde então um papel crucial na supervisão e regulação das atividades nucleares em todo o mundo, contribuindo para a prevenção da proliferação de armas nucleares através da verificação dos compromissos assumidos pelos estados membros do TNP (tratado de não proliferação nuclear).
Ao celebrar o 70º aniversário do discurso “Átomos para a Paz”, é importante destacar os avanços significativos na aplicação pacífica da energia nuclear ao longo de sete décadas. Seu conceito trouxe à tona a ideia de utilizar a energia nuclear em benefício da medicina, indústria, agricultura, e geração de energia elétrica limpa, sem emissão de gases nocivos para a atmosfera, e de calor para uso em diversos processos de produção, tais como o de dessalinização e o do hidrogênio atualmente chamado de “azul”, tão importantes para a atual transição energética e mitigação das mudanças climáticas.
As aplicações nucleares têm levado desde então ao desenvolvimento de tecnologias médicas avançadas, como a radioterapia para o tratamento do câncer, e permitiu a produção de isótopos radioativos para diagnóstico e terapias de amplo espectro de doenças. Técnicas de irradiação de alimentos reduzem significativamente as perdas na cadeia logística de distribuição. Essas técnicas também são aplicadas à esterilização de material médico e cirúrgico e até mesmo na preservação de obras de arte
Além disso, a energia nuclear tornou-se uma importante fonte de suprimento de eletricidade em muitos países, superando 50% da geração em alguns como a França, Eslováquia e Ucrânia, contribuindo assim para a diversificação das fontes e segurança energética.
Os pequenos reatores nucleares modulares (SMR da sigla em inglês), abrem amplas perspectivas de cogeração para usos não elétricos com aproveitamento direto do calor gerado para indústrias como as do aço, alumínio, cimento e produção de combustíveis sintéticos, bem como de unidades de geração em locais remotos como nos oceanos, sejam fixas no leito marinho ou flutuantes, e no espaço, sejam para propulsão de foguetes lançadores ou para geração elétrica interna a veículos espaciais e até mesmo fixas em corpos celestiais mais próximos da Terra, como a Lua e Marte. Some-se a isso o desenvolvimento acelerado da digitalização e inteligência artificial que requer data centers com cada vez maiores potências de geração descarbonizada, com altíssima confiabilidade e disponibilidade contínua, sem interrupções ou intermitência.
Hoje, à medida que celebramos o aniversário do discurso de Eisenhower, é importante refletir sobre o seu legado e o progresso que foi alcançado desde então. A Aiea continua desempenhando um papel crucial na supervisão das atividades nucleares em todo o mundo, promovendo a segurança nuclear e a cooperação internacional. As aplicações pacíficas da energia nuclear continuam a beneficiar a humanidade, melhorando a qualidade de vida e impulsionando avanços científicos.
No entanto, é crucial lembrar que os desafios associados à energia nuclear também persistem. A segurança nuclear, a gestão de resíduos radioativos e a não proliferação de armas nucleares continuam a ser preocupações globais. É um lembrete constante da necessidade de cooperação internacional e da aplicação responsável da tecnologia nuclear.
O discurso do presidente Eisenhower em 1953 continua a ser um alerta poderoso do potencial da ciência e da tecnologia para moldar o nosso futuro. Ele nos exortou a usar a energia nuclear de maneira responsável e a buscar a paz em um mundo marcado pela ameaça das armas nucleares. Hoje, honramos essa visão e reafirmamos o compromisso de promover a utilização pacífica da energia nuclear em benefício de toda a humanidade.
À medida que celebramos este aniversário, devemos refletir sobre o legado do discurso “Átomos para a Paz” e reafirmar nosso compromisso com o uso pacífico da energia nuclear. O discurso de Eisenhower continua sendo uma inspiração para promover a paz, a segurança e a cooperação em um mundo onde a energia nuclear desempenha um papel significativo e potencialmente crescente face a transição energética.
Em última instância, o “Átomos para a Paz” de Eisenhower é uma lembrança de que a ciência e a tecnologia podem ser usadas para o bem da humanidade, desde que haja um compromisso contínuo com a responsabilidade e a cooperação internacional. Ele continua a ser um marco importante na história da diplomacia nuclear, destacando a importância de utilizar o conhecimento nuclear em prol da paz e do desenvolvimento para o atingimento dos objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS ou SGD da sigla em inglês) estabelecidos pela ONU.
O artigo foi publicado originalmente no site Conjur (Revista Consultor Jurídico, 24 de outubro de 2023, 12h21)
Autor: Engenheiro Leonam dos Santos Guimarães – engenheiro naval e nuclear (PhD), membro da Academia Nacional de Engenharia, ex-presidente da Eletronuclear, ex-coordenador do Programa de Propulsão Nuclear da Marinha e associado da ABEN
Foto: Dwight D. Eisenhower proferindo o famoso discurso “Átomos para a Paz” na Assembleia Geral da ONU em 8 de dezembro de 1953 / Crédito: ONU/AIEA – Foto: 2023
Fonte: Conjur