O professor de Física da Escola Politécnica da Universidade de Pernambuco (UPE) Heldio Pereira Villar questiona, em entrevista à Associação Brasileira de Energia Nuclear (ABEN), mitos e tabus em torno da energia nuclear, o desconhecimento da tecnologia e de aplicações nucleares por grande parte da população e fatos históricos, entre outras temáticas. Engenheiro civil, mestre em Tecnologia Nuclear (Universidade Federal de Pernambuco – UFPE / Universidade de Saskatchewan, Canadá) e doutor em Geotecnologia Ambiental (Universidade de Manchester, Grã-Bretanha), Villar, que também trabalhou na Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), está prestes a lançar livro Educação Nuclear para Todos.
“A publicação discorre sobre o funcionamento das armas nucleares e dos reatores nucleares e trata das variadas aplicações dos materiais radioativos na medicina, na agricultura, na indústria, nos transportes, etc. Termina com um apanhado da história do setor nuclear no Brasil e, particularmente, em Pernambuco. É profusamente ilustrado e perfeitamente ao alcance de qualquer pessoa interessada que tenha passado pelo científico. Não nos esqueçamos de que, como a aprovação de uma usina nuclear passa por várias audiências públicas, em última análise é o povo que tem a última palavra. E o povo jamais fará a escolha certa se não tiver a informação correta sobre o assunto. Daí o título do livro”, esclarece.
Confira, abaixo, a entrevista com o professor Heldio Pereira Villar.
O senhor publicará um livro de divulgação da energia nuclear. Existem muitas publicações na área, inclusive da própria CNEN, à qual pertenceu. O que o motivou a escrever tal livro?
De fato, o leitor interessado poderá encontrar, mesmo se só souber ler em português, dezenas de textos da área nuclear para o público em geral. A Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), da qual fui bolsista e, por 15 anos, funcionário, publicou alguns. Além disso, ela manteve durante anos um programa chamado “A CNEN vai às escolas”, no qual seus pesquisadores e tecnólogos faziam visitas regulares. No meu modo de ver, contudo, essas iniciativas não têm dado tanto resultado.
O senhor não acha importante que a energia nuclear seja desmistificada?
Aí é que está a questão. Por que ela foi mistificada?
Bem, como toda novidade, o desconhecimento sobre a energia nuclear faz com que ela naturalmente seja vítima de mistificação, não acha?
Vamos pensar no seguinte. A CNEN começou a produzir textos de divulgação e a ir às escolas bem antes, por exemplo, da chegada dos celulares e da internet. Não me parece que celulares e internet tenham sido vítimas de mistificação. Ao contrário. Apesar dos alertas aterradores – causariam cânceres no cérebro, lembra-se? – os celulares conectados à internet são o maior sucesso de público deste início de milênio! É comum dizer que o público em geral não tem informação sobre a área nuclear. Isso não é verdade.
Como assim?
Há alguns anos estive em uma audiência pública e dois professores da área bateram nessa tecla. Eu aí perguntei a eles e à plateia se sabiam o que era um quasar. Ninguém sabia, nem os professores. Logo, há um desconhecimento generalizado acerca do quasar. Contudo, o cidadão minimamente informado sabe que existem materiais radioativos, que a energia do núcleo pode produzir energia elétrica ou uma explosão, que existem raios gama, que a radiação do núcleo causa câncer, mas também cura câncer, etc. Assim, fica difícil falar em desconhecimento. A propósito, quasar – além de marca de perfume – é um núcleo galáctico altamente luminoso alimentado por um fantasticamente pesado buraco negro.
O cidadão comum tem uma visão distorcida da energia nuclear. Existe uma oposição popular enorme à central proposta para Itacuruba/PE, certo?
Eis a diferença entre não informado e mal informado. No caso dos temas nucleares, houve – como se costuma dizer nas ciências humanas – uma curiosa mudança de paradigma. Até meados da década de 1960, mesmo impressionados e até horrorizados com o que tinha acontecido em Hiroshima e Nagasaki, as pessoas saudavam o desenvolvimento do setor nuclear como um sinal do progresso. No livro eu resgato uma história em quadrinhos da década de 1950 na qual o Pato Donald participa de uma competição em que o grande prêmio é uma mina de urânio. Aqui no Brasil, o presidente Juscelino Kubitschek, ao assumir, em 1956, anunciou um grande incentivo às atividades nucleares.
O que aconteceu, então?
Essa é a proverbial “pergunta de um milhão de dólares”. Eu não me sinto à vontade para dar uma opinião definitiva. O que posso dizer é que o movimento antinuclear coincide com a contracultura que teve seu auge no final dos anos 1960. Vamos pensar da seguinte forma: os partidários da contracultura se posicionavam contra tudo que viam como característico da cultura ocidental. Os sucessivos desastres americanos no Vietnã incluíram as ações militares no rol das “inimigas”, o que inevitavelmente envolveu a condenação das armas nucleares e, por associação, das atividades nucleares como um todo. A contracultura virtualmente desapareceu, mas o movimento ambientalista resolveu eleger os reatores nucleares, ao lado dos combustíveis fósseis, como os grandes vilões. Acidentes como o da usina de Three Mile Island e, especialmente, o de Chernobyl pareciam sepultar de vez o setor nuclear. Mas, seu sucesso em alguns países, como o Japão, a França, a Coreia do Sul e, mais recentemente, a China, levaram a uma espécie de reabilitação, puxada pelo medo do aquecimento global causado pela queima de combustíveis fósseis. E o uso crescente de materiais radioativos na medicina mostrou que o que pode matar também pode curar. E aí vem uma informação equivocada: pesquisadores e técnicos, no compreensível afã de “dourar a pílula” do setor nuclear, incluem a radiografia entre as aplicações nucleares. Decididamente, não é o caso.
Então o raio X não é uma aplicação nuclear?
Os raios X partem de um tubo de vidro que, na verdade, é uma lâmpada que funciona com 30, 60, 100 mil volts. Ou seja, para emitir radiação o tubo tem que ser ligado a uma tomada. Já um material radioativo emite radiação – a partir do núcleo de seus átomos, o que não é o caso dos raios X – espontaneamente. E essa é apenas uma das razões.
O senhor há de convir que é uma tentativa para enfatizar os usos pacíficos da energia nuclear.
Você tocou num ponto crucial. Embora seu uso esteja mais que consagrado, não me agrada essa história de “uso pacífico”.
Então o senhor apoia o uso militar?
Claro que não. Sou um homem de paz. Todavia, você certamente já ouviu falar numa área de estudo bem recente chamada “neurolinguística”, certo? Ela estuda a forma como nós elaboramos a linguagem. E, mesmo antes da neurolinguística, já se dizia que as palavras tinham poder. Vou exemplificar com a informática. Todos sabem que na Guerra do Golfo, há mais de 30 anos, as “estrelas” foram as chamadas “bombas inteligentes” e os mísseis de cruzeiro. As bombas eram guiadas por câmeras que as dirigiam para o alvo desejado. Já os mísseis, de mais longo alcance, tinham na memória um mapa da região e só caíam quando o alvo era localizado com base nesse mapa. Nos dois casos, microprocessadores eram usados. É perfeitamente lícito, então, enfatizar um eventual “uso bélico da informática”, já que a informática tem amplo emprego em muitas outras atividades. Mas, quando você enfatiza o “uso pacífico” de alguma coisa, você dá a entender que aquela coisa tem, normalmente, um uso bélico, mas que você pode “dar um jeitinho” para que seja empregada eventualmente em outra coisa. Ora, o único emprego bélico da tecnologia nuclear foi na bomba. Fora disso, ela é usada para diagnosticar e curar, para preservar alimentos, para estudos hidrológicos, em vários processos industriais e, sobretudo, para produzir energia elétrica. A bem da verdade, o uso militar é o uso eventual. Lembrando que, desde Nagasaki, há quase 80 anos, a bomba atômica nunca mais foi usada em guerra. Em sendo assim, por que não falar apenas em “uso”?
O senhor considera superestimados os argumentos dos antinucleares relativos a acidentes e rejeitos radioativos?
Vamos atentar para os fatos. O episódio de Fukushima não surgiu do nada. Ele decorreu de um dos mais fortes terremotos já registrados, que levou a um tsunami excepcional. Uma contagem de mortos indicou 15.899. Desses, exatamente 1 aparentemente – vou repetir, aparentemente – em função da dose de radiação recebida dentro da usina. Era, obviamente, um trabalhador. Já o acidente de Chernobyl resultou da má operação de um reator inerentemente inseguro. Apesar dos números altamente inflados que a mídia divulgou e ainda divulga sobre Chernobyl, até hoje o número de mortos se situa entre 60 e 70. Pelo menos metade desse número corresponde aos chamados “liquidadores”, bombeiros e soldados que foram convocados para apagar o fogo e limpar a área em torno da usina. E aqui eu quero fazer um comentário que considero relevante. Um total de 343 bombeiros morreram no World Trade Center no 11 de Setembro. Os bombeiros que entraram nos prédios sabiam que tinham escassas chances de sair com vida. Com toda justiça, foram homenageados como heróis. Por que foram os liquidadores de Chernobyl vistos como “vítimas da energia nuclear”? Já os rejeitos da operação dos reatores nucleares, os componentes mais ativos, são, evidentemente, muito perigosos. Mas, como todos os materiais perigosos, basta que sejam isolados da biosfera. E há décadas sabemos como fazê-lo. Sabemos como encapsular o material e já existem túneis a grandes profundidades escavados para estocá-lo. Até aqui, no mundo inteiro os rejeitos mais ativos são armazenados no fundo de grandes piscinas no próprio sítio da usina. No livro eu mostro uma fotografia em que várias pessoas estão na margem de uma dessas piscinas. Ou seja, a radiação emitida não é tão perigosa assim, desde que mantenhamos distância. No ano que vem o depósito de rejeito de Onkalo, na Finlândia, começará a receber os rejeitos dos reatores finlandeses. A Finlândia é só um pouquinho menor que Goiás. Isso quer dizer que o Brasil tem espaço demais para armazenar os nossos rejeitos.
Em sua visão, por que a expansão nuclear é interessante para o Brasil?
Temos urânio em abundância, particularmente no Nordeste. Para efeito de comparação, se os seis reatores de Itacuruba existissem e operassem num ritmo similar ao da central nuclear de Angra, produziriam tanta energia quanto todas as turbinas eólicas do Nordeste. Apenas uma usina numa área que, fosse ocupada por um parque eólico, não geraria nem 0,5% da energia gerada pela usina nuclear.
De que forma o Sr. acha que seu livro poderá contribuir para o debate em torno da energia nuclear?
Uma coisa que não faço no meu livro é proselitismo. Em nenhum momento tento induzir o leitor a ir às ruas clamando por usinas nucleares. Mas, eu me reservo o direito de criticar a forma exagerada com que essas opções como a eólica e a solar são “vendidas” na imprensa. No meu livro eu menciono uma matéria sobre uma usina solar com potência “de pico” de 3 MW inaugurada há alguns anos em Santa Catarina. “Pico” quer dizer que, naqueles poucos segundos em torno do meio-dia em que o Sol estiver em seu ponto mais alto num céu sem nuvens, a potência dessa usina será de 3 MW. Segundo o jornal, essa usina teria a capacidade de abastecer 2.500 casas. Ora, 3 MW são 3 mil kW. Repartidos por 2.500 casas dão, em média, 1,2 kW por casa, ou seja, a potência de um ferro elétrico. É óbvio que seria altamente improvável que em cada residência haja um ferro ligado naqueles poucos segundos. Mas, outros aparelhos talvez estejam ligados. A potência de um forno de micro-ondas é tipicamente 1,5 kW. Um condicionador de ar tem potência similar. Um chuveiro elétrico tem, no mínimo, o triplo. Sem esquecer que, apenas duas horas e meia antes ou depois das 12h, a potência – caso o céu se mantenha sem nuvens – não passará de metade do “pico”. Assim, afirmar que essa usina irá atender 2.500 casas me parece um tanto irreal. O mesmo se dá com a energia eólica. Foi anunciado, no início deste ano, que o Brasil tinha atingido em 2021, em termos de capacidade de geração eólica, “uma Itaipu e meia”, ou seja, 21 GW. Só que Itaipu usualmente gera, na média, 90 TWh por ano, enquanto todas as turbinas eólicas do Brasil geraram 57 TWh em 2021.
É aí que os reatores nucleares mostram sua grande vantagem, que é a eficiência. Angra tem apenas 2 GW e gera consistentemente 16 TWh por ano. Fosse Itaipu tão eficiente – e é a usina de grande porte mais eficiente do mundo – geraria consistentemente 112 (em 2021, um ano ruim, mal passou de 66). E as turbinas eólicas, 168. Esses argumentos são apresentados no livro de maneira bem simples. E, é lógico, são mostrados os acidentes nucleares mais relevantes ao longo dos tempos. São exatamente quatro, embora eu relute em situar o episódio de Fukushima-Daiichi como acidente, já que o que o motivou foi um terremoto. E ainda acrescento o chamado “acidente de Goiânia”, que não é exatamente nuclear, mas radiológico. O livro vai do conceito dos gregos antigos de “átomo” até a descoberta do bóson de Higgs. Discorre sobre o funcionamento das armas nucleares e dos reatores nucleares e trata das variadas aplicações dos materiais radioativos na medicina, na agricultura, na indústria, nos transportes, etc. Termina com um apanhado da história do setor nuclear no Brasil e, particularmente, em Pernambuco. É profusamente ilustrado e perfeitamente ao alcance de qualquer pessoa interessada que tenha passado pelo científico. Não nos esqueçamos de que, como a aprovação de uma usina nuclear passa por várias audiências públicas, em última análise é o povo que tem a última palavra. E o povo jamais fará a escolha certa se não tiver a informação correta sobre o assunto. Daí o título do livro: Educação Nuclear para Todos.
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