Uma dose de “cinismo” no embargo de energéticos da Rússia
Articulista convidada – Olga Simbalista*
A crise energética gerada pelo conflito Rússia e Ucrânia é muito mais complexa que as crises do petróleo dos anos 1970, pois não se restringe às enormes altas nos preços de um único combustível, mas contamina toda a economia, a cadeia alimentar e diversos insumos, como fertilizantes, metais estratégicos como cobalto, lítio, níquel e outros indispensáveis para a cadeia de suprimento de veículos elétricos e equipamentos eletrônicos.
A Rússia, não só, é um dos maiores exportadores de petróleo e derivados, mas é também o fornecedor dominante de gás natural para a Europa, em cerca de 40%, sendo 60% para a Alemanha, bem como o maior exportador mundial de carvão e de urânio levemente enriquecido usado para o suprimento de usinas nucleares, principalmente, para as dos Estados Unidos da América – EUA.
Deve-se enfatizar que os EUA são autossuficientes em carvão, petróleo e gás natural, sendo inclusive exportadores de excedentes, porém, no seu mercado interno, pratica preços internacionais e não de seus custos de produção, como atualmente está sendo feito no Brasil.
Com a implementação do boicote à Rússia pelas grandes economias ocidentais, incluindo bloqueio de contas bancárias, e proibição de importação de commodities, os preços destas explodiram, em particular, dos energéticos, com graves consequências, a se agravarem no próximo inverno, como racionamento de energia para lares e indústrias, gerando inflação em patamares da Segunda Guerra Mundial, com fechamento de empresas, desemprego e recessão. A Europa já é a região mais prejudicada por esta crise, pois além de sua dependência das fontes energéticas russas, grande parte de suas fontes autônomas é constituída por fontes intermitentes de eletricidade, como eólica e solar, as quais não garantem um suprimento contínuo. Tal situação se deve não só a recentes políticas ambientais que levaram a desinvestimentos em óleo e gás, privilegiando tais fontes alternativas, mas também, como no caso da Alemanha, por pressões de partidos ambientalistas, que, para garantir a sobrevivência da Chanceler Merkel, após o acidente de Fukushima, exigiram o fechamento das plantas nucleares do país, consideradas as mais eficientes no mundo. No momento atual, as nucleares desligadas poderiam contribuir para uma geração de base a baixos custos, minimizando os efeitos do déficit do gás russo.
Cabe registrar que, mesmo com as sanções e a redução da produção russa de petróleo em cerca de um milhão de metros cúbicos por dia, a explosão dos preços garantiu ao país grandes superávits comerciais em seu balanço de pagamentos.
Mas cenário pior ainda poderá estar por vir, quando o “lockdown” da China com relação à Covid-19 acabar e suas demandas de gás e petróleo voltarem ao patamar normal, alavancando os preços ainda mais para cima e reduzindo o volume de combustíveis disponíveis para a Europa, cortando, inclusive, o fornecimento para países como Finlândia, Polônia, Bulgária e Alemanha, a não ser que venham a pagá-lo em rublos.
Outra grave consequência foi a intensificação do uso do carvão na Índia, Paquistão e mesmo na Europa, elevando os preços deste energético a valores recordes. Em entrevista publicada pelo semanário The Economist, em 30 de junho p.p., o senador republicano John Barrasco disse que os EUA necessitam de uma política inteligente de subsídios para a produção doméstica de combustível nuclear, de modo a reviver o setor nuclear no país, pois, desde 2013, 13 reatores comerciais foram desativados, somente um entrou em operação e apenas dois estão em construção, com centenas de dias de atraso e orçamentos fora da realidade. Isto porque com os astronômicos subsídios dos novos renováveis (eólicas e solares), novos nucleares não conseguem competir.
Ainda segundo Barrasco, o mercado internacional, hoje, é dominado por Rússia e China, este último o maior construtor de plantas nucleares domésticas e o maior investidor em fontes de urânio em outros países como Namíbia, Níger, Cazaquistão e Austrália. Já a Rússia é o maior exportador de tecnologia nuclear, incluindo reatores de potência, combustível e laboratórios de aplicações na saúde, indústria e pesquisas tecnológicas.
Por outro lado, mesmo os EUA sendo os maiores produtores mundiais de eletricidade de origem nuclear, 90% do urânio usados nestes reatores são importados e mais da metade oriundos da Rússia, Cazaquistão e Uzbequistão, em particular urânio enriquecido da Rússia, uma vez que o país sequer dispõe de planta comercial de conversão de U308 em UF6.
Tal dependência estratégica fez com que o embargo de energéticos da Rússia, cinicamente, excluísse a compra de combustível nuclear. Somente as vendas deste combustível aos EUA, em 2021, totalizaram mais de US$ 1 bilhão, transformando ironicamente o legado dos “Átomos para a Paz” em “Átomos para Putin”. O país, ao contrário do petróleo, não possui reservas estratégicas de urânio e continua comendo em mãos russas, agora a preços de guerra. Na realidade, quem está arcando com a salgada conta do boicote aos energéticos russos é, particularmente, a Europa.
Outro aspecto tragicômico das sanções é o aumento das emissões de carbono nesse continente, pois sua economia passou a desprezar os valores ambientais da ESG, valorizados na última década e não só suas populações, mas, principalmente, suas indústrias, incapazes de pagar esta amarga fatura, voltaram a queimar carvão, gás e óleo combustível. Mas de acordo com a Agência Internacional de Energia – AIE, outro fato desastroso se avizinha com o esforço que a Comunidade Europeia, em particular a Alemanha, motor da Europa, deverá impor-se para enfrentar o próximo inverno sem o gás russo. É assim que a banda toca: Business as Usual!
*Olga Simbalista é engenheira especializada em energia nuclear. Conselheira da Seção Latino Americana da American Nuclear Society (ANS) e do Instituto Ilumina. Ex-presidente da ABEN (biênio 2016-2018).
O artigo foi publicado originalmente aqui. Leia outros textos disponíveis no Blog Papo Nuclear aqui.
Imagem: Pixabay
Fonte: Blog Papo Nuclear – SIEN