Por Leonam Guimarães
Os atrasos e sobrecustos verificados na construção de usinas nucleares, especialmente nos países ocidentais, destacam mais uma vez a sabedoria do almirante Hyman G. Rickover quando falou da diferença entre reatores reais e “reatores de papel”.
Esta citação se origina em um documento de 5 de junho de 1953, que ele leu como parte de seu depoimento perante o Congresso americano, publicado em AEC Authorizing Legislation: Hearings Before the Joint Committee on Atomic Energy (1970), p. 1702.
O termo originalmente usado por Rickover era “reatores acadêmicos”, mas o termo “reatores de papel” parece ter se popularizado nos anos seguintes. Veja que uma consulta ao termo “paper reactors” (reatores de papel) aponta quase 15 milhões de links no Google, enquanto o termo “academic reactors” (reatores acadêmicos) apenas 720.000.
Decisões importantes sobre o futuro desenvolvimento da energia nuclear devem ser frequentemente tomadas por pessoas que não necessariamente têm um conhecimento profundo dos aspectos técnicos dos reatores. Essas pessoas estão, no entanto, interessadas em que uma usina nuclear produzirá, quanto custará, quanto tempo levará para ser construída e por quanto tempo e quão bem ela operará. Quando elas tentam aprender essas coisas, percebem uma certa confusão existente nos negócios nucleares que faz parecer haver conflitos não resolvidos em quase todas as questões que surgem.
Acredito que essa confusão decorre de uma falha em distinguir o teórico do prático. Esses conflitos aparentes geralmente só podem ser explicados quando os diversos aspectos da questão são resolvidos em seus componentes acadêmicos e tecnológicos reais. Para auxiliar nesta resolução, é possível definir de forma geral as características que distinguem um do outro.
Uma unidade nuclear acadêmica quase sempre tem as seguintes características básicas: (1) É simples. (2) É pequena. (3) É barata. (4) É leve. (5) Pode ser construída muito rapidamente. (6) Tem uma operação muito flexível (multipropósito). (7) Muito pouco desenvolvimento é necessário. Ele usará principalmente componentes “de prateleira”. (8) O reator está em fase de estudo. Não está sendo construído agora.
Por outro lado, uma usina nuclear prática pode ser distinguida pelas seguintes características: (1) Está sendo construída agora. (2) Está atrasada. (3) Está exigindo uma imensa quantidade de desenvolvimento em itens aparentemente triviais. A corrosão, em particular, é um problema significativo. (4) É muito cara. (5) Demora muito tempo para construir devido aos problemas de desenvolvimento de engenharia. (6) É grande. (7) É pesada. (8) É complicada.
As ferramentas do projetista do reator acadêmico são as ferramentas computacionais que substituíram um pedaço de papel e um lápis com borracha, dos tempos de Rickover. Se um erro for cometido, ele sempre poderá ser eliminado e alterado. Se o projetista do reator prático erra, ele carrega o erro aonde for; não pode ser apagado. Todos podem ver.
O projetista do reator acadêmico é um apaixonado pela área. Ele não teve que assumir nenhuma responsabilidade real em relação aos seus projetos. Ele é livre para se deleitar com ideias elegantes, cujas falhas práticas podem ser relegadas à categoria de “meros detalhes técnicos”. O projetista de reatores práticos deve conviver com esses mesmos detalhes. Embora recalcitrantes e estranhos, eles devem ser resolvidos e não podem ser adiados até amanhã. Suas soluções exigem mão de obra, tempo e dinheiro.
Infelizmente para aqueles que precisam tomar decisões abrangentes sem o benefício de um conhecimento profundo da tecnologia de reatores e, infelizmente para o público interessado, é muito mais fácil entender o lado acadêmico de uma questão do que o lado prático. Em grande parte, os envolvidos com os reatores acadêmicos têm mais inclinação e tempo para apresentar suas ideias em relatórios e oralmente para quem vai ouvir. Como inocentemente não estão cientes das reais dificuldades ocultas de seus planos, eles falam com grande facilidade e confiança. Já aqueles envolvidos com reatores práticos, humildes por conta de suas experiências, falam menos e se preocupam mais.
No entanto, cabe àqueles em altos cargos tomar decisões sóbrias, e é razoável e importante que o público seja informado corretamente. Consequentemente, cabe a todos nós expormos os fatos da maneira mais direta possível. Embora seja provavelmente impossível ter ideias sobre reatores rotuladas como “práticas” ou “acadêmicas” pelos autores, vale a pena tanto para os autores quanto para o público ter em mente essa distinção e se orientar por ela.
A realidade é que muitos projetos de grande escala parecem ter atrasos na construção e custos excessivos. E as novas tecnologias sempre têm alguns obstáculos inesperados a serem superados. Quantos carros e outros produtos novos e avançados de todos os tipos não corresponderam às expectativas? Junte novo e grande e você terá uma “perfect storm” (tempestade perfeita) de condições que levam a atrasos e estouros de custos.
Não estou dizendo isso para dar desculpas e justificar todos os atrasos e aumentos de custos. Estou apenas pedindo mais atenção para tentar antecipar os problemas o máximo possível e mais cautela sobre o que prometemos. As notícias atuais de atrasos em projetos não são as primeiras e não serão as últimas. Todos devemos lembrar que todos os projetos grandes e inovadores parecem perfeitos no papel, e transformar um reator de papel em um real não é uma tarefa fácil.
Foto: Divulgação
Autor: Leonam Guimarães – presidente da Eletrobras Eletronuclear
Fonte: LinkedIn do Leonam Guimarães (https://www.linkedin.com/pulse/reatores-de-papel-hoje-rickover-estava-certo-leonam-guimar%C3%A3es?trk=public_post-content_share-article)